Hermetismo

De Thot a Hermes Trimegisto: O Egito Antigo e o Hermetismo Árabe

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Cintia Prates Facuri

 Graduada – Universidade de São Paulo; Orientador: Prof. Dr. Mamede Mustafa Jarouche; Tema de pesquisa de Iniciação Científica: Magia e Literatura no Egito Antigo: Os Contos do Papiro Westcar; Financiamento: Pró-Reitoria de Pesquisa USP.

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Resumo

Relata-se em textos árabes antigos um sábio que teria vivido no Egito antigo chamado Hermes Trismegisto ou Hermes, o Três Vezes Grande, sendo esse o nome dado pelos alquimistas, neoplatônicos e místicos ao deus egípcio Thot, que é identificado com o deus grego Hermes. Tanto as lendas relacionadas a Hermes como os escritos atribuídos a ele levantam inúmeras discussões, uma vez que fazem parte dos saberes a partir dos quais serviram de base para a formação da cultura árabe em seu início. Para entender esses textos, é preciso estar ciente do contexto árabe e considerar a base onde surgiu o hermetismo árabe e sua recepção na Europa dos séculos XV e XVI e a importância do Egito Antigo. Buscarei demonstrar o modo como ocorreu a transmissão dessa lenda e de seus conhecimentos, com enfoque principalmente na formação do Hermes Árabe e o papel por ele exercido, levando em conta o estatuto desse material no mundo e no pensamento árabe.

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Introdução

Relata-se em textos árabes antigos um sábio que viveu no Egito antigo chamado Hermes Trismegisto ou Hermes, o Três Vezes Grande, sendo esse o nome dado pelos alquimistas, neoplatônicos e místicos ao deus egípcio Thot, que é identificado com o deus grego Hermes. Os textos mais importantes atribuídos a Hermes Trismegisto são a Tábua de Esmeralda e os textos do Corpus Hermeticum.

Tanto as lendas relacionadas a Hermes como os escritos atribuídos a ele levantam inúmeras discussões, uma vez que fazem parte dos saberes a partir do qual serviram de base para a formação da cultura árabe em seu início, além de terem sido traduzidos para a língua árabe a partir de livros dos sábios da antiguidade, em que grande parte da literatura árabe foi baseada. Para entender esses textos, é preciso estar ciente do contexto árabe e considerar a base onde surgiu o hermetismo árabe e sua recepção na Europa dos séculos XV e XVI. No entanto, os escritos de Hermes foram estudados desde o Marrocos até a Índia, tendo adquirido maior importância na tradição árabe do que na tradição Ocidental.

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De Thot a Hermes

Thot, uma das maiores divindades do panteão egípcio, foi adorado desde o Período Dinástico Inicial (c. 2920 a.C.)¹ até o Período Romano. O significado e origem do nome do deus são desconhecidos. Thot ou Thoth é a forma helenizada do nome Dhwty. Representado pelo babuíno (Papio cynocephalus) e pela íbis (Threskiornis aethiopicus), tanto na forma animal quanto híbrida. A forma de babuíno do deus Thot está mais associada a aspectos lunares, ao ofício do escriba e à veneração solar. A forma híbrida com cabeça de íbis está associada à Thot em seu aspecto de escriba divino, ao julgamento da alma, à Maat (a ordem cósmica) à purificação e investidura real. Comum às duas formas de representação de Thot está o seu aspecto lunar.

1 Estandartes com a imagem divina da íbis sagrada, animal identificado a Thot, aparecem representados em paletas do reinado de Djer (terceiro rei da I Dinastia). Fragmentos de uma etiqueta do reinado de Den (quinto rei da I Dinastia), encontrado em Abidos, mencionam a construção de uma estátua para a íbis sagrada. (WILKINSON, 2000, p. 198, 297).

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O deus Thot foi associado aos aspectos intelectuais cósmicos presentes na criação do universo, assim como às faculdades humanas relacionadas ao pensamento e à inteligência. Sendo assim, ele está ligado à escrita, sendo chamado “Senhor das Palavras Divinas” (nb mdw.w.ntr)², às ciências (medicina, astrologia, matemática), a partir do Médio Império (c. 2000 a.C.) à justiça e às leis. Como manifestação do verbo criador, ele é chamado no templo de Opet em Karnak de “coração de Rê, língua de Tatenem e a garganta de Amon”³. Era também “aquele que separou as línguas de um país a outro” e “aquele que conta o tempo”, epítetos que o designam respectivamente como o responsável pelas línguas egípcia e estrangeiras e pelo registro da passagem do tempo. Era tido como o escriba divino e criador da escrita, o que o fez ser associado a Hermes pelos primeiros colonos gregos que se estabeleceram no Egito, por volta do século VI a.C.4

2 Isto é senhor dos hieróglifos.
3 Para os antigos egípcios o coração era a sede da inteligência e do discernimento. Desta forma, Thot desempenha o papel de intelecto do deus criador, ao mesmo tempo em que executa a vontade do Criador pela vocalização do verbo criador, sob a forma da língua de Tatenem e da garganta de Amon.
4 O objetivo deste trabalho não é um estudo aprofundado sobre os aspectos mitológicos do deus Thot, para tanto colocamos no final do texto as principais fontes primárias para o estudo desta divindade.

Thot era o senhor do conhecimento mágico e dos segredos divinos colocados à disposição dos deuses e dos homens. Mais do que qualquer outro deus, Thot era o “senhor do heka” (magia). A magia egípcia pode ser entendida como uma força sem caráter moral determinado, de origem divina, utilizada pelos homens, pelos deuses e pelos mortos para manter a Ordem Criada (Maat) ou para provocar uma intervenção divina nesse mundo ou no Mundo dos Mortos. Assim, entendemos a ligação entre Thot e o conhecimento mágico contido nos textos.

Talvez a primeira obra de caráter “hermético” produzida pelos egípcios antigos tenha sido o “Livro dos Dois Caminhos”5. Esse texto aparece nos caixões da XII Dinastia (c. 1950 a.C.) encontrados em El-Bershah a necrópole do décimo quinto nomo do Alto Egito. Nos contos do papiro Westcar o mago Djedi teria o conhecimento do número de câmaras secretas do templo de Thot, o que significaria que seus poderes mágicos viriam do conteúdo guardado nessas câmaras. Acredita-se que esse conto tivesse sido escrito durante o Período Hicso (c. 1650 a.C), narrando acontecimentos que teriam se passado durante o reinado de Khufu (c. 2551 a.C.).

 5 O primeiro guia ilustrado do Mundo Inferior, estando nele o “Caminho Inferior” e “Caminho Superior”. O morto, ameaçado por vários perigos, é ajudado pelas fórmulas mágicas a superar os obstáculos. (De acordo com Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jr).

Contudo, a primeira referência a um livro escrito por Thot talvez seja uma inscrição data da XVIII Dinastia (c. 1398 a.C.), encontrada em uma das estátuas do vizir Amenhotep Filho-de-Hapu depositadas no templo de Amun em Karnak. O texto sugere a existência de um livro que conteria os ensinamentos iniciáticos do deus, o que pode ser observado na inscrição:

“Fui iniciado no livro do deus (eu) vi as glorificações de Thot e penetrei seus segredos”.

Na Baixa Época, Thot é: o grande deus “Senhor da Magia” (nb hk3(t)). Há também os epítetos: “Grande em Magias” wr(t) (hk3w)ou (wr hk3). Durante a XXVI Dinastia temos pela primeira vez o epíteto “duas vezes grande” (‘3 ‘3) encontrado em uma estela dedicatória datada do ano vinte de reinado do faraó Apries (c. 589 a.C.). O qualificativo “duas vezes grande” adquire em demótico, na XXVII Dinastia, durante o reinado de Dario I (c. 521 a.C.), o advérbio “muito” (wr) e a partir do século II a.C. surge o epíteto “Três Vezes Grande” (‘3 ‘3 ‘3 wr), como aparece no Templos Ptolomaicos de Dendera e Esna. Paralelamente, Thot possui também o epíteto de “Cinco Vezes Grande” (diw ‘3). No Período Romano, o poder atribuído a Thot era considerado tão grande que, segundo Cícero, os egípcios temiam pronunciar seu nome. O epíteto egípcio “Três Vezes Grande” deu origem à expressão grega Trismegistos, que surgiu pela primeira vez em inscrições encontradas em Akhmim, datadas de 240 d.C.

A crença de que o próprio deus Thot teria deixado uma série de inscrições de caráter hermético pode ter surgido como vimos durante o final do Médio Império ou no Período dos Hicsos, mas é no Ciclo de Setne, datado do Período Ptolomaico (c. III século a.C.) onde temos uma descrição mais detalhada de um corpus de textos iniciáticos escritos pelo deus Thot. Haveria 42 livros contendo todo o conhecimento necessário à humanidade. Nesses, 36 conteriam a ciência dos egípcios e o restante os conhecimentos de medicina, de acordo com Clemente de Alexandria.

A Alquimia

Os primeiros escritos gregos de Hermes Trismegisto sobre alquimia datam dos séculos II a I a.C. O Egito era chamado de kmt “terra negra”, por oposição à “terra vermelha” do deserto dshrt, advindo do solo fértil depositada pelas cheias do rio Nilo, ou seja, a matéria orgânica onde ocorre a transmutação dos metais. Disto deriva o nome “alquimia”, usado pelos árabes para designar essa arte tradicionalmente egípcia, tendo na figura de Hermes Trismegisto um grande sábio.

A Tábua de Esmeralda é um dos textos mais conhecidos da literatura hermética e alquímica e teria fundado a alquimia árabe, uma vez que conteria o segredo da substância primordial e suas transmutações. Escrito pelo fundador mítico da alquimia, Hermes Trismegisto, possui este nome, pois foi gravada em uma tábua de esmeralda. Sua versão mais antiga encontra-se em um tratado árabe do século VI, o Livro do Segredo da Criação, datado de antes de 825 d.C.

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A Hermética Grega Antiga no Egito Romano e sua Recepção na Europa

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De acordo com Mahé, a filosofia hermética surge nos três primeiros séculos da era cristã. Em 1995 foi descoberto um Livro de Thot em demótico que os egiptólogos R. Jasnow e K.T. Zausisch reconstituíram a partir de papiros do século II a.C. Esse texto seria encenado no festival de Imhotep-Asclépio, um dos interlocutores de Hermes. A ação ocorre no mundo inferior, havendo inúmeras referências cosmológicas ao Egito antigo. No entanto, muitos dos temas já anunciam os escritos filosóficos de Hermes Trismegisto. A transição do egípcio para o grego já se torna mais clara, uma vez que alguns dos papiros demóticos do Livro de Thot já são glosas gregas, de acordo com Mahé.

Sábios do Egito Romano escreveram tratados científicos e filosóficos em grego, sendo que em muitos desses estudos há diálogos entre deuses egípcios, alguns com nomes gregos, tendo como figura principal Hermes, o equivalente grego sincrético do deus egípcio Thot. Hermes aparece como aquele que ensina os outros personagens em seus diálogos, como Tat, Amon e Asclépio. O termo Hermético, referente aos textos como um grupo, é derivado do nome de Hermes. Este recebe o título Trismegisto, o “Três Vezes Grande”, vindo de um antigo título egípcio de Thot, tendo aparecido primeiramente em grego no contexto dos sacerdotes egípcios do Período Ptolomaico como “o maior e o maior grande deus”. Tal epíteto faz a distinção entre o Hermes egípcio e o Hermes grego.

A Hermética grega do Egito Romano abarca faculdades do conhecimento como astrologia, cosmologia e medicina. Há a descrição de uma doutrina filosófica revelada por Hermes, por onde seus discípulos poderiam saber e entender a alma, o universo e Deus. Já os homens vivem a mercê do destino e das forças do cosmo.

Há dois tipos de sabedorias nos livros de Hermes: 1) é possível alcançar um nível de força e de controle do mundo terreno através do conhecimento das harmonias celestes a partir de elementos terrestres; 2) Hermes ensina seus discípulos, através dos diálogos, como transcender às circunstâncias corpóreas e superar o destino pela purificação do intelecto e da contemplação, levando ao conhecimento verdadeiro de Deus.

A Hermética grega que conhecemos hoje são os diálogos filosóficos. Um monge chamado Leonardo adquiriu o manuscrito de um texto hermético grego para Cosino de’Medici em Florença de um comerciante da Macedônia. O estudioso Marsilio Ficino foi incumbido de fazer a tradução para o latim, publicada em 1471 e tendo no século seguinte atingido vinte e cinco edições. A editio princeps do original em grego foi escrita por Adrianus Turnebus em 1554. Nas palavras de Van Bladel, recebida com extraordinário interesse, a Hermética grega foi pensada durante este período para representar a fonte primordial, original da filosofia.

A queda da popularidade da Hermética ocorreu em 1614 quando Isaac Casaubon afirmou que a Hermética grega não era tão antiga quanto se acreditava, sendo derivada aparentemente do início da era cristã. No entanto, no século XVIII e começo do século XIX houve interesse por parte dos egiptomaníacos, alquimistas, membros de sociedades secretas e pessoas envolvidas em correntes esotéricas de pensamento nos escritos Herméticos.

No entanto, no século XIX esses textos começaram a ser vistos como artefatos históricos, havendo a necessidade de estudá-los. O debate a fim de demonstrar que estes textos são fruto de seu contexto histórico centrou-se em determinar primeiramente a qual “nação” pertencera, tendo sido essencialmente grego e depois europeu ou “ocidental”, ou egípcio e oriental e então estrangeiro, e definir qual comunidade em particular os produziram.

Nos anos de 1940 e 1950, Festugière realizou um estudo mostrando que a Hermética fora totalmente helenística em contexto e forma, não tendo adquirido elementos importantes de outras culturas. No final dos anos 1970 e 1980, estudos realizados por Jean-Pierre Mahé e Garth Fowden defendiam a existência de algo intrinsecamente egípcio nos textos, e que esses só poderiam ser entendidos no contexto egípcio helenístico. Mahé afirma que os textos gregos têm como base o gênero egípcio das instruções aforísticas. Fowden alega que a gênese da Hermética só pode ser entendida quando colocada no contexto social do Egito Romano. Estas especulações fazem da Hermética um documento nem grego nem egípcio em essência, mas fruto da sociedade egípcia romana, sintetizando práticas destas duas culturas. Em outras palavras, uma sociedade que deve ser entendida sem que haja uma separação entre as características gregas e egípcias.

O título Corpus Hermeticum é usado para se referir apenas ao hermetismo filosófico grego que surgiu na Itália do século XV. Provavelmente há muito mais escritos atribuídos a Hermes em árabe do que em outra língua, no entanto, a maior parte ainda se encontra desconhecida ou não publicada. O problema reside em estabelecer a continuidade da tradição da Hermética antiga e o que as pessoas pensavam de Hermes até a época de sua atestação em árabe. A recepção desses textos traduzidos do grego para o árabe, assim como para outras línguas, é produto do período hoje em dia chamado de antiguidade tardia.

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A Recepção da Hermética Grega na Antiguidade

Sabemos pouco sobre a comunidade ou as comunidades que produziram a Hermética grega, apenas que eram pagãos do Egito Romano e consideravam esses ensinamentos distintivamente egípcios. A mais antiga referência a Hermes Trismegisto como uma figura importante aparece nos primeiros textos cristãos dos séculos II e III.

Autores como Athanegoras (final do século II) e Tertullian (c. 200 d.C.) citam Hermes em seus estudos, podendo ser observado que desde o começo a Hermética era considerada vinda de uma época muito antiga. Os escritos de Hermes também foram traduzidos para o persa médio no século III na corte do imperador Šāpūr I, juntamente com trabalhos de Ptolomeu, Doroteu, entre outros.

As traduções em copta da Hermética foram encontradas nos códices de Nag Hammadi da metade do século IV, onde mostrou-se que os sábios egípcios leram a tradução da Hermética para sua língua. O poeta siríaco do século IV, Ephraem, afirmou que os maniqueus também consideravam Hermes o precursor de seu profeta. Apesar das inúmeras especulações, o que pode ser afirmado é que a Hermética foi muito lida, citada e apreciada durante os séculos III, IV e V, além de ter sido aplicada por muitas correntes religiosas tendenciosas que não a utilizavam com seu verdadeiro sentido.

A Hermética tinha autoridade como uma fonte de documentos autênticos da sabedoria egípcia antiga, sendo esta autoridade que lhe imprimia validade a autores não egípcios que também os produziram. Segundo Van Bladel, os textos Herméticos se tornaram documentos de uma formação filosófica e espiritual específica que pertenceu a uma época precedente. Após o século IV, não havia mais sinal de uma comunidade viva sucessora dos verdadeiros autores Grego-egípcios, estudiosos da Hermética.

Hermes se tornou um misterioso sábio antigo, cujos trabalhos se tornaram conhecidos através de citações, além de terem sido usados para reforçar conceitos religiosos. Hermes se tornou conhecido em muitas línguas e épocas, tendo seus trabalhos traduzidos para o grego, latim, siríaco, copta, armênio e persa médio. Hermes tornou-se conhecido entre os árabes, tanto suas ideias como sua figura, em meados do século VIII, em uma atmosfera diferente daquela por onde ele havia circulado anteriormente.

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Erudição Árabe e os Livros dos Antigos em Baġdād

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O Hermes árabe surgiu em um contexto de grande circulação de conhecimentos, onde autores de muitos campos do saber, vindos de diferentes etnias e lugares, se encontravam, utilizando a língua árabe em Baġdād.   Hermes já aparece em citações de sábios árabes antigos do século VIII, como em escritos de astrólogos da corte do império abássida. No século IX, Hermes começou a ser considerado um profeta antediluviano, cuja revelação teria formado a base da ciência. Acreditava-se que seus trabalhos teriam sido transmitidos a partir de um passado distante, como uma herança dos povos antigos, sendo então redescobertos pelos estudiosos muçulmanos nesta época.

Há muitos estudos árabes clássicos atribuídos a Hermes. No entanto, apenas seis desses textos foram publicados e pouco se sabe a respeito de sua origem. Acredita-se que muitos desses textos Herméticos árabes sejam traduções de seus originais em grego, cujo material original está perdido.

Os Termos Hermético e Hermetismo no Pensamento Árabe

Muito do que se escreveu acerca da Hermética e do Hermetismo árabe na língua árabe nos deixa apenas vagas impressões de um movimento intelectual e especulações acerca de suas referências textuais. Ainda há a necessidade de se mostrar o que exatamente os textos Herméticos árabes significaram, quem os utilizava e como, onde eles surgiram, como foram transmitidos, em que sentido esses textos são considerados Herméticos, e o que acreditava-se ser Hermes e por quê.

Van Bladel estabeleceu as seguintes convenções para os termos Hermético e Hermetismo em seu livro:

O termo Hermético será aplicado apenas aos textos atribuídos nominalmente a Hermes. A expressão Tradição Hermética será usada apenas para significar a tradição de transmissão textual dos escritos atribuídos a Hermes. Os termos Hermetismo e Hermetistas serão evitados o máximo possível.

Devemos ter em mente que o termo Hermetismo não existe na literatura árabe. As convenções utilizadas pelos estudiosos modernos devem ser descartadas, se atendo o máximo possível às fontes primárias a fim de trabalhar com a verdadeira Hermética árabe e os principais trabalhos posteriores relacionados a ela.

Hermes no Irã Sassânida

Podemos afirmar que havia uma literatura Hermética persa abarcando textos sobre astrologia escritos em persa médio atribuídos a Hermes. Há evidências já no século III, no reinado do imperador Sāpur I, de que a ciência teria sido adquirida no Egito e que trabalhos atribuídos a Zoroastro, Ostano e outros sábios iranianos teriam entrado em circulação e atraído a atenção dos filósofos. Há referências em escritos gregos de uma sabedoria supostamente iraniana, oculta no Egito, que daria suporte para inúmeras referências persas e árabes datadas do século VI em diante, alegando que a ciência persa fora resgatada de seu lugar de origem pelas traduções na época de Šāpūr I.

Existe um grande número de escritos transmitidos ao árabe a partir do grego através do persa médio, podendo oferecer uma importante referência para a história das traduções Greco-árabes. O valor da contribuição da mediação do persa médio entre os textos gregos para o árabe originou-se em grego durante um período inicial, em um contexto diverso daquele onde se deu a transmissão dos textos filosóficos gregos para o árabe realizada por arameus e árabes cristãos de séculos posteriores. O que podemos afirmar é que a primeira aparição de Hermes em árabe, no século VIII, se deu na tradição persa e não na tradição grega.

Hermes e os Sábios de Harran

Por volta de 600 d.C., os harranianos atribuíam grande valor aos filósofos pagãos, entre eles Hermes Trismegisto, mas não há evidências que Hermes ou seus escritos Herméticos gozavam de grande estima, aparecendo juntamente de inúmeros filósofos antigos.

O filósofo árabe al-Kindi (c. 870 d.C.) teve conhecimento de um documento Hermético árabe relacionado ao Corpus Hermeticum grego, afirmando que os harranianos consideravam essas doutrinas de grande valor. Cerca de três séculos mais tarde, Ibn al-Qiffi soube da existência de diálogos entre Hermes e seu filho Tat, e Ibn al-‘Ibri afirmou que haveria uma Hermética siríaca com as mesmas características. Acredita-se que essas evidências poderiam estar presentes no Corpus Hermeticum grego e possivelmente também na base do texto árabe de al-Kindi. No entanto, o documento em árabe conhecido pelo filósofo árabe não sobreviveu, não tendo nem mesmo outros autores o lido ou mencionado. A ideia de que Hermes fora um profeta reconhecido pelos harranianos era de conhecimento dos sábios árabes do século IX em diante. No entanto, não há descrição de escritos atribuídos a Hermes capazes de serem identificados, sendo possível que cada autor possuísse esses textos, se eles existiram, à sua disposição.

No final do século X, a sistematização de textos aristotélicos dominou a filosofia árabe, deixando pouco espaço para trabalhos diversos encontrados em traduções árabes sobre o Corpus Hermeticum grego. Os conhecimentos que se tornaram mais notórios dentro dos domínios do Islã acerca da Hermética árabe foram aqueles relacionados aos talismãs e à astrologia. Foram esses textos, juntamente aos textos alquímicos que se tornaram mais conhecidos dos estudiosos dos dias de hoje, dando a Hermes notoriedade em traduções árabes e latinas desde o século XII até a época de M. Ficino na Europa. Para Van Bladel, a dificuldade em se achar algum traço do Corpus Hermeticum grego em árabe demonstra a diferença entre a hermética conhecida em árabe e aquelas que se tornaram de grande destaque no início da Europa moderna.

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A Lenda dos Três Hermes

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Estudiosos árabes pré-modernos acreditavam que o Hermes que supostamente escreveu os textos poderia ser três indivíduos diferentes, cada qual um sábio. O primeiro deles teria sido o fundador das ciências antes do Grande Dilúvio; o segundo teria sido um sábio babilônio que viveu depois do Grande Dilúvio; e o terceiro teria vivido posteriormente no Egito. Essas lendas sobre Hermes passaram por países onde se falava a língua árabe, do Mediterrâneo e o Sudoeste Asiático para a Europa latina, formando parte da base de recepção dos textos Herméticos em latim.

Apesar das inúmeras especulações acerca da origem da lenda dos três Hermes, podemos afirmar que Abu Ma’sar de Balh (c. 886), um dos astrólogos mais influentes da Idade Média, sendo que seu livro Os Milhões é uma das principais fontes da lenda de Hermes em árabe, teria se baseado em um trabalho cronológico, hoje perdido, de fontes cristãs para estabelecer a lenda dos dois primeiros Hermes.

Podemos concluir então que a biografia do Hermes árabe tem como base três principais fontes, sendo as primeiras pré-islâmicas: 1)Livro de Sothis, escrito por um pseudo-Manethon e mediado pelos cronistas egípcios Panodorus e Annianus e a tradição cronográfica siríaca; 2) a descrição de astrólogos iranianos acerca do Hermes babilônio; e 3) al-Kindi, que possuía um conhecimento da Hermética árabe, hoje perdida. O que temos então são: dois Hermes mais um.

A lenda dos três Hermes em árabe é reflexo da atmosfera da Bagdad clássica, onde os estudiosos traduziam e sintetizavam todo conhecimento da humanidade para a língua árabe. Essa tradição transmitida não era historicamente verossímil, mas proveniente em uma antiguidade tardia a fim de explicar a existência de uma literatura grega originalmente egípcia, alegando ser fruto de uma sabedoria primeira.

Nas palavras de Van Bladel, o mito árabe de Hermes como um antigo mestre de apelo universal e um profeta da ciência resultou da combinação de inúmeros elementos pré-islâmicos e islâmicos: a lenda de Enoque, o papel de Hermes como um mestre das ciências astrológicas na hermética grega antiga, a afirmação dos harranianos de que Hermes era seu profeta, os ensinamentos das primeiras missões Isma’īli sobre Hermes, e a literatura sapiencial atribuída a Hermes.

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Conclusão

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Muito se especula acerca da figura de Hermes e dos documentos atribuídos a ele, no entanto ainda há muito a ser estudado. Apresentarei aqui, com base nas fontes acima apresentadas, o que se sabe certamente sobre Hermes e seu mito árabe.

Uma primeira tradição acerca de Hermes está na compreensão da sua figura, que parte dos estudiosos árabe teve como base para a recepção sassânida da Hermética traduzida para o persa médio. De acordo com Van Bladel, Ibn Nawbaḫt atesta haver uma tradição pré-islâmica persa, alegando que o mago egípcio antigo tem sua origem na Babilônia, e que ele teria ensinado as ciências do Irã aos egípcios.

A concepção de um Hermes babilônio fez com que ele fizesse parte de uma rede de narrativas caracterizadas por promover a aceitação de saberes advindos de fora como parte da herança iraniana trazidas à luz pelos primeiros imperadores sassânidas. Uma segunda tradição diz respeito a Hermes como um sábio astrólogo advindo de Harran. Por volta de 600 d.C., o politeísmo na Harran bizantina fez de Hermes Trismegisto mais que um filósofo, mas um profeta pagão. No entanto, não há evidências de textos árabes Herméticos transmitidos aos harranianos na antiguidade. Sabe-se apenas que Hermes fora reconhecido como profeta sem ao menos haver uma tradição de textos Herméticos em Ḥarrān. A terceira tradição liga-se a al-Kindi, por ter afirmado que alguns dos diálogos Herméticos, referentes ao Corpus Hermeticum ou outros trabalhos relacionados, existiram em traduções em língua árabe na metade do século IX. O filósofo árabe diz que os escritos de Hermes são de grande estima para os harranianos, mas al-Kindi não afirma ter recebido o texto deles.

A partir desse material, Abu Ma’sar compôs a lenda dos três Hermes: o primeiro antediluviano, profeta das ciências; o segundo pós-diluviano que retomou os ensinamentos do primeiro; e o terceiro um sábio egípcio de uma época tardia. Apesar de seu livro não ter sobrevivido até os dias de hoje, seu trabalho foi muito citado, tendo sido fonte de pesquisa para os estudos acerca de Hermes.

Nos século X, um estudioso que acredita ser um sábio harraniano da corte de Bagdad escreveu um estudo apologético sobre Hermes, colocando-o como um profeta pagão. O autor teve como base os trabalhos que haviam sido escritos sobre Hermes e os adaptou para os leitores de sua época, sendo caracterizado como o fundador de uma comunidade religiosa pagã. Essa religião mencionada pelo autor é seguida por todas as pessoas do mundo e é caracterizada como monoteísta, e não politeísta. O original desse escrito está perdido, mas em 1048 d.C. no Egito, al-Mubassir ibn Fatik adaptou um fragmento desse trabalho em sua gnomologia de sábios antigos.

Os trabalhos de Abu Ma’sar e al-Mubassir se estabeleceram como as principais fontes para o estudo de Hermes na tradição literária árabe, permanecendo como tal até recentemente. Os escritos de al-Mubassir foram traduzidos para o espanhol e latim no século XIII, para o francês por volta de 1400 e para o provençal e inglês no século XV. Em seus trabalhos Muhtar al-Hikam Siwan al-Hikma sobre a gnomologia histórica da filosofia, Hermes é colocado como uma figura importante em muitas gnomologias árabes acerca da história da filosofia árabe, sendo citado como o primeiro estudioso, ou um dos primeiros a existir.

Por volta de 840 d.C., al-Gahiz já tinha conhecimento da existência de Hermes como Idris-Enoque, o profeta que ascendeu aos céus para ter visões e aprender os segredos dos anjos, o que no século X transformou-se em um mito e se tornou conhecido décadas mais tarde. O mito da ascensão de Hermes ficou mais conhecido através do Risalat al-Tuffaha, uma adaptação do Fédon de Platão. A partir dessas e de outras fontes, o mito de Hermes Três Vezes Grande chegou até diversos estudiosos desde a Ásia Central e a Índia até a Andaluzia.

Os diálogos filosóficos de Hermes Trismegisto, apesar de terem influenciado muitos estudiosos na Europa, entre eles os árabes pré-modernos, permaneceram praticamente desconhecidos. Hermes era mais conhecido como um mestre de astrologia, alquimia e da arte de se fazer talismãs.

Acreditava-se que os primeiros textos Herméticos escritos em árabe teriam sido descobertos em livros ou estelas em túneis ou nas ruínas egípcias ou em traduções de antigos livros ocultos. Esses escritos ensinam técnicas de como extrair poderes mágicos das propriedades ocultas dos elementos terrestres e celestiais. Muitos desses escritos são decorados com signos criptográficos e alguns deles com símbolos imitando os hieróglifos egípcios. Fora de seu contexto, esses textos perdem seu sentido, aparecendo como representações de uma “escola de pensamento” oculta.

A Hermética árabe foi continuamente utilizada e citada na tradição árabe até o século XVIII, tendo os manuscritos circulado em cópias até o final do século XIX. O desenvolvimento da Hermética árabe juntamente com o mito árabe de Hermes teve seu fim apenas recentemente com a colonização europeia, o surgimento da imprensa e de novos sistemas de educação, fazendo com que a tradição árabe da transmissão dos manuscritos fosse abolida.

Na tradição clássica ocidental, calcada na antiguidade tardia, Hermes Trismegisto adquiriu o papel importante de uma lenda, um ideal de sabedoria a ser seguido, o fundador do conhecimento, o profeta da ciência, o primeiro dos sábios.

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Thot nos Textos Egípcios

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A seguir apresentarei uma lista com as principais fontes textuais faraônicas referentes ao deus Thot em ordem cronológica, onde podemos observar muitas características que se assemelham à figura de Hermes Trismegisto. Devemos estabelecer primeiramente quais são os elementos que caracterizam Hermes Trismegisto, sendo eles: possuidor dos livros mágicos do conhecimento; possuidor do conhecimento através da palavra, do texto, da magia; caracterizado como sendo o deus da alquimia.

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Fontes Primárias
Textos das Pirâmides 210, 359, 594-96, §126-130d, §1271b
Textos dos Caixões 156 e 277
Livro dos Mortos 17-18, 20, 125 e 182
Livro do Amduat
Livro da Terra (Aker)
Papiro Chester Beatty I recto (A Grande Contenda)
Papiro Jumilhac
Papiro Anastasi V
Livro de Thot
Ciclo de Setne
O mito do Olho do Sol
Instruções de Amenemopet
Estela Metternich
Plutarco – Ísis e Osíris XII

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